Pedro Ivo Frota | O Pão de Cada Dia

O Pão de Cada Dia

Na época do surgimento do tropicalismo, o flerte com a cultura pop foi um modo
subversivo que o movimento encontrou de ampliar os horizontes do que era entendido
como arte e cultura. Vestir a máscara superficial do entretenimento que dialogava
com a indústria de massa da época foi uma estratégia inteligente de dar mais
visibilidade à arte e fazer jus à sua importância. Mas a verdade não é estática. É
imprescindível que a arte acompanhe as transformações da sociedade para que o
caráter político que qualquer criação carrega seja mantido, caso contrário o que se faz
é reproduzir o que ouvimos há 40 anos – predominantemente ecos desse movimento.

A canção brasileira não conquistou lugar de destaque na música que se faz no
mundo à toa, os grandes mestres conceberam cada nota com esmero, cientes do
grande tesouro que tinham nas mãos. Mas a música que se faz hoje no Brasil faz jus à
sua importância histórica? Hoje essa música existe mas não exerce mais o papel de

protagonista, o lugar que ocupa não faz jus à sua grandeza que ajudou a inventar um
país.

Transgredir tem a ver com transcendência. Toda forma de transgredir as regras é
também uma maneira de reinventar a realidade ou transformá-la. Arte sem
transcendência não é arte. Basta saber agora o que podemos chamar de transgressão e
a maneira de executar tarefa tão árdua nesse campo. Aprofundar-se nessa questão é
cair fatalmente na discussão estética da arte ou da vida enquanto experiência estética.
O desafio do criador é colocar a arte nesse lugar da transcendência que exige uma
leitura minuciosa da realidade para perceber o quanto a sociedade contemporânea está
imersa na escravidão, e para que o espírito não se iluda gritando verdades parciais
achando que está gritando a verdade.

Uma geração que pretende criar algo com a consistência de um cânone deve, antes
disso, entender bem a essência da obra de arte do passado que passa inevitavelmente
por sua esfera simbólica e mitológica, para só então realizar uma transgressão
cuidadosa. É necessário saber onde se pisa para não chamar de transgressão o que é
apenas uma rebeldia adolescente. O tropicalismo soube ter essa leitura da Bossa Nova
e da semana de 22 dialogando com esses movimentos e negando-os em pontos
estratégicos. Hoje os tropicalistas mantém a posição de verdadeiros mitos vivos
conquistada com todo mérito mas não exercem mais a postura artística que os
consagraram. Não há problema nenhum nisso desde que o lugar para uma nova
maneira de pensar a música seja conhecido por todos e não sofra a sina de viver à
sombra de gigantes. A recriação da arte deve ser uma constância por uma questão de
saúde da arte.

Tradição não é um conceito estático, mas toda tradição carrega valores
fundamentais que devem ser adaptados com as transformações da sociedade, não
esquecidos. A tradição entendida como algo sem movimento não é saudável e a
sociedade que não respeita a tradição caminha para a doença, pois as tradições
funcionam como “pilares” das culturas. Muito do que se chama de “novo” hoje, não é
novo. A discussão do novo, como qualquer discussão estética, não é fácil. É comum
por exemplo associar de forma superficial o recurso estético da música eletrônica
criado há cem anos atrás na música erudita como o novo, sendo que a música só
poderá soar como o “novo transgressor” se tiver outros elementos que componham
sua essência e digam isso. O recurso estético está subordinado ao conteúdo artístico e
vice-versa, uma coisa só não pode falar por toda a obra. Essa confusão é só um dos
exemplos que servem como diagnóstico de um vazio na cultura que não entende a
tradição, que é também a cultura que dá mais importância à máquina do que à música.

Refletir sobre essas considerações é de extrema importância para quem se
considera um criador. A herança tropicalista, se assimilada acriticamente, pode não

ser benéfica. O que outrora fora apenas uma máscara superficial estratégica de um
movimento está se transformando na essência em si, a Nova-MPB. E essa assimilação
superficial mantém o tesouro que passa por Villa Lobos, Tom Jobim, Dorival
Caymmi, Edu Lobo e tantos outros em segundo plano. Por isso um categórico “não ”
como resposta à pergunta; A música que se faz hoje no Brasil faz jus à sua
importância histórica? Não seria má resposta.

Um país com tantas diversidades deve criar uma música rica e diversa, no entanto,
a palavra ” diversidade” não pode ser usada para justificar descuido. O slogan “MPB é
Tudo” serve como uma generalização mediocrizante. O risco da generalização é não
dar importância aos detalhes, e quando se fala na diversidade da música brasileira, os
detalhes são de extrema importância. O outro problema dessa generalização é que ela
não sugere um “filtro” para o ouvinte em tempos tão dominados pela cultura de massa
e o puro entretenimento. A internet, muito louvada e pouco criticada, contribui para
essa generalização porque não propõem nenhum tipo de hierarquia, ou seja, é comum
acharmos tesouros no meio de uma imensa cacofonia. Quem perde com isso? O
criador atento, o músico e o ouvinte interessado. Só a esses interessa a discussão. Mas
por ironia,o verso do grande músico Gilberto Gil ” O povo sabe o que quer/ Mas o
povo também quer o que não sabe”, cai muito bem aqui.

À arte cabe o papel fundamental de atender os anseios do espírito que não se
contenta só com desabafos, verdades parciais e consolos. O protagonismo da arte é
imprescindível para uma sociedade não cair na barbárie, e o que estamos vendo é uma
sociedade cada vez mais tecnicista e pouco preocupada com os assuntos da alma e da
espiritualidade. Um assunto tão caro ao ser humano não pode ser tratado com
leviandade publicitária. E quando se fala em arte no Brasil, a canção tem papel
fundamental na formação da nossa identidade. Só a arte tem o poder de transcender e
nos levar a lugares inusitados, cabe a mim e a todos o papel de tentar achar esse lugar
pois esse também é o nosso pão de cada dia.